domingo, 24 de maio de 2009

EU TE DIREI EM VERSOS


A poeta conseguiu plasmar em versos de requintada fatura, sem excentricidades, com um léxico preciso e até com certo laconismo mas com uma força poética iniludível, seu pensamento e seu sentir sobre tudo aquilo que conforma a matéria dos problemas fundamentais do homem: o amor, o destino, a morte. Na obra de Tania Alegria encontramos o prazer do verso e a armonia de uma obra poética construida com talento e beleza. A poesia de uma dama.
Rafaela Pinto, poeta e escritora (Argentina)




LEGADO

Quando eu morrer
num recanto do sótão
acharão um baú velho de mogno
com o modesto saldo dos meus bens:
meu legado de trastes
isento de tributos.

Nunca guardei por mais de uma semana
cartas de amor,
postais marcando ausências,
números telefônicos,
fotografias.
Não acharão nenhum amor-perfeito
entre as vetustas páginas de um livro
nem guardanapos sujos de poemas.

No meio dos objetos já sem uso
está um par de sapatos de verniz
que levavam meus pés para encontrar-te
(ninguém há de notar que eram asas);
algumas joias falsas, reluzentes,
como os meus olhos sempre que eu te via;
roupas fora de moda
onde ninguém verá
– porque não são visíveis as lembranças –
no meu vestido a mancha dos teus braços.


SEMPRE QUE MORRO

Sempre que morro, morro de naufrágio:
uma ilusão maior, mais atrevida,
mergulho fundo e rouba a minha brida
a morte sem presságio.

Não me cabe o direito de sufrágio.
Encontra-me em geral desprevenida
quando chega, avarenta e travestida,
a sorte por seu ágio.

Por lapso ou negligência
me afogo ingénua e dócil, com confiança.
Usualmente pereço de inocência.

Sucumbo de esperança,
de ingratidão, de perda, de inclemência.
Algumas vezes morro por vingança.


DE ENCRUZILHADA

Estou como quem vai, mochila às costas,
como quem viesse e não chegasse nunca,
viajante de pretéritos momentos,
estou só de passagem,
estou de encruzilhada.

Deixo vestígios, ecos de penúrias,
meu sangue ainda escorre na calçada
e em cada esquina, sob a luz da rua,
há pocinhas de pranto mal chorado
que esqueci de beber na hora da partida.

Talvez me encontres – se procuras muito –
nalgum porto, num bar mal afamado,
onde aposto nos naipes que te esqueço
e perco sempre.


EU TE DIREI EM VERSOS

Eu te direi em versos porque consta que a prosa
exige todavias alheios aos Outonos
das ramagens que o vento desfolhou.

Eu te direi em versos que já fomos deuses.

Portávamos olhares luminosos,
tínhamos mãos abertas como cálices
onde cabia o vinho de outros vasos,
nossas palavras cúmplices e alegres
recorriam às cegas os trajetos
buscando madressilvas redentoras
que resgatassem muros
da sua solidão desamparada.

Eu te direi em versos que já fomos Nós.

Mas um dia partiste em um ocaso
onde se inauguravam os pretéritos
e eu ordenei ao clã dos meus fantasmas
que mantivesse abertos os caminhos
para que entrasse pelas minhas pálpebras
esse pó assassino de distâncias
que se eleva do chão
se a tua voz galopa nos crepúsculos.


VENHO MATAR-TE

Venho matar-te.
Tardei em decidir-me esses dois séculos
que passei recitando um solilóquio
diante do espelho.

Tenho olhos de cal de tanto odiar-te.

A pele escorregou sem credo que a firmasse.

Descarnada por dentro, abjeta, despojada,
a língua em fel diluída, desfeita em impropérios,
com a boca repleta de blasfêmias,
venho matar-te
empunhando, homicida,
este punhal de versos.

(De InVerso, Ed. Movimento, Crivella, AlegrePOA, Porto Alegre, RS, Brasil)

sábado, 9 de maio de 2009

MEMORIAL DE EXORCISMOS

Tania Alegria conhece o lugar preciso dos versos, daí a celebrada sonoridade dos mesmos. Igualmente conhece, palmo a palmo, os lugares do amor e das esperas, esperas que se tornam pombas hieráticas à intempérie; ela se deixa levar por esse círculo vicioso e travesso das palavras através das quais sua inspiração, sua linguagem, elevam à máxima expressão artística a sua voz imperiosa e cheia de surpresas. E tudo é fina trama. E tudo é paixão. E tudo é submersão. E tudo é Verbo ou versos que deslumbram e relampagueiam.

Delfina Acosta, poeta e escritora (Paraguay)


EVANGELHO DE EXORCISMOS

Chegas com o carisma, o verbo, o signo
e o gesto amável de amputar as sombras.
Impenitente emerges de outro abismo,
desde um lugar sem nome em minha história.

Te esperava no pórtico de gritos
onde se desordenam as demoras
cifrando um evangelho de exorcismos
nos ritos sigilosos da memoria.

Chegas como quem não, como quem passa
e ao azar se detém e por acaso
se vê e se reconhece em meus espelhos.

Faz séculos que eu teço uma ramada
para enlear-te as horas nos meus braços
e enredar tua voz nos meus silêncios.


ESPERANDO O AMOR SEM CRER QUE EXISTA

Parto para a paisagem das desertas
planícies que há no mapa do meu peito,
onde há um pátio com aroma a cedros
e silêncios se erguem como ameias.

Ali moram meus anjos de tristeza,
os diabos que percorrem meus segredos
e, oculta do outro lado dos espelhos,
a menina que fala com as feras.

Estarei revestida de invisível,
sem forma ou gravidade, como nuvem,
utópica, qual eixo de uma abcissa,

entrançando hipotéticas elipses
com este ódio fiel e este costume
de esperar pelo amor sem crer que exista.


MEMORIAL DA ESPERA

Chegou a chuva com seus dedos de água
tamborilando a face dos cristais
e escreveu os teus signos nas janelas.
E veio um árduo frio pelas estradas
onde andam em geral os desamores,
meteu-se pelo viés dos meus umbrais
e me disse o teu nome por enigmas.

Eu me apressei em enfeitar a vida
com as coisas que luzem as esperas:
enchi vasos com versos e impudores
e no teto preguei clarões de lua.
Para que não te aflijas com meus lutos
guardei meus mortos em caladas lápides,
para que não te doam meus pesares
no jardim enterrei os infortúnios.
Para os teus lábios de promessa e beijo
minha boca sequiosa, envenenada,
engendrou na inquietude das demoras
um memorial de infernos e poemas.


SUL

Tenho um baú cheio de Sul no sótão
e um código cifrado para abrir a tampa:
Deve-se dizer golpe sem mencionar o sangue na ferida,
deve-se dizer trem sem referir a gare,
e outras palavras, como pão e mãe,
signos com a veemência de uma proa de barco
rompendo as ondas no oceano aberto.

Há que dizer exílio.

Tenho restos de Sul como migalhas
nas tigelas da infância.
Há demasiado verde na memória,
afectos de joelhos
nas escuras cavernas do passado,
verdades como punhos que mutilam
cada proposição do silogismo
em que se ampara a armação da carne.

Alvoroça um escândalo de trópicos
essa suspeita paz dos meus subúrbios
e é por isso que os cães do esquecimento
rastreiam margens,
farejando nos trilhos mar a dentro
o sangue dos meus passos
sempre que parto com o exílio às costas.


ARAUTOS

Nessa garoa se adivinham sombras
que com as mãos molhadas
me indicam o caminho para os bosques
onde murmuram duendes
com vozes de madeira.

Sei que desde o umbral dos desconsolos
és tu quem chama.

E no entanto me sabe a rebeldia
este gosto de sândalo na boca.
Soa a passos de coxo esse rumor
das asas do meu anjo subversivo.
Tenho umas ganas loucas de sujar teu rosto
com os cravos vermelhos macerados
que um dia destinei ao meu sepulcro.

De modo que não venham os arautos
anunciar-te com líricos pregões.

No caso de que venha a arrepender-me
dos meus irreprimíveis arrebatos
venho deixar na tua porta um beijo
e um poema canalha.


UM PUNHADO DE ARGILA

Às vezes te despertas e é como se morresses
de espanto e de estranheza
ao vislumbrar o dia, discernir seus escolhos,
avaliar quantos passos te restam para a noite.
Árido chão espera a marca dos teus dedos,
não tens mais que um punhado de argila para erguer
a colossal muralha que guarda os teus silêncios.

Tão só que a tua sombra
não cruzará contigo o grés dos pórticos,
tão muda que as palavras
não acharão o rumo que leva aos teus ouvidos,
construirás, obstinada, as cercas do teu pátio.

E nada chegará incólume ao crepúsculo.

Virá a lua clara iluminar despojos
enquanto dos teus olhos os pássaros emigram.
Amanhã voltarás, sem outros argumentos
além das tuas mãos e um punhado de argila,
para erigir os muros que encerram teus silêncios.

(De Memorial de Exorcismos, Colección Biblioteca Digital Siglo XXI)