sábado, 29 de maio de 2010

OFICIANDO O RITO DE ENREDAR AS HORAS

Fotografia de Tamara Andreeva

SOMBRAS

Eu velarei a tua sombra onde
o tempo com seu séquito de outonos
transite o caos para além das pálpebras
e seguirei a marca dos teus passos
que um dia foram bússola, quadrante
e arca para os lúgubres despojos
da errática odisseia que empreendi
em direção ao sul dos meus naufrágios.

Onde, grave e remota, a tua sombra
esteja, a minha sombra – teu reflexo –
ali estará, na borda do abandono,
para cifrar o signo dos percursos
que levam ao revés dos teus enigmas
e recorrer contigo lado a lado
os páramos sem fim do esquecimento
e os infernos vorazes da memória.

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Pablo Picasso


GERÚNDIO

Esquecer-te não é o que eu pensava:
vastidão de vazios em subserviência,
a incógnita encontrada
numa equação mental de utilidades
nem toalha de cinza que recobre
migalhas de um banquete consumido
ou névoa que se estende até à linha
de um horizonte ao qual voltei as costas.

Pois não. É tempestade reincidente,
o vendaval que arrasta esses despojos
de um antigo naufrágio
até à praia dos meus egoísmos.

Ou então labareda
que vai abrindo sulcos sobre a pele,
calcinando a fronteira do intangível.

Esquecer-te é cumprir essa sentença
perpétua, inexorável, reiterada.
A gente não esquece:
vai esquecendo.
Construção absoluta, estado durativo.
É um gerúndio

eternamente

sendo.


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MUJERES POETAS INTERNACIONAL

"Soy todo lo que puedo ser, soy poeta, soy mujer"
(slogan del Movimiento Mujeres Poetas Internacional)

Poema vencedor no 1º Concurso Internacional de Poesia "Yo soy mujer" promovido por Movimiento Mujeres Poetas Internacional

CREDO DE MUJER

Puedo soportar todo. Nada es insoportable:
lo que me dilacera, lo que me hace pedazos,
el tajo de la daga, la cal de los abrazos,
el beso envenenado, el golpe insoslayable.

Soy hecha de coraje con casco reciclable.
La carne abierta en trizas, destrozada a zarpazos,
me recojo del suelo y apaño los retazos,
reúno mis fragmentos. Y nada es insalvable.

Es todo lo que tengo: la garra que rebrota,
que me hace restaurar las ruinas del flagelo
y continuar entera y estar en paz conmigo.

La clave es el silencio que al espanto agarrota.
No me concedo el grito. No me permito el duelo.
Puedo soportar todo. Resisto. Y sumo y sigo.

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Aristide Maillol

CAMBALACHO

De repente uma estrofe - e por que não? -
uma única, suja, maculada,
impiedosa e violenta,
sem pesares nem lutos,
uma flecha direto na pupila
que revele os enganos e perjúrios,
o desfalque que dei nas realidades,
os sonhos dissipados,
a pouca compaixão, a indiferença,
a fraude nos afetos, a tramóia
que perpretei na minha biografia:
uma estrofe que nasça das entranhas
e se enferme na sílaba penúltima,
e faleça na última fronteira:
há sempre um outro som além do canto
e um novo território além do verso.

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Lylia Cornelli

NÃO FOMOS MAIS QUE DOIS

Não fomos mais que dois e um evangelho
manuscrito em versículos hereges,
um dúo de demônios penitentes
adito em descifrar os sortilégios.

Éramos os guerreiros de um exército
de anjos com estigmas de febre,
uma obstinada multidão de duendes,
uma constelação, dois hemisférios.

Pássaros resgatados das gaiolas,
uma bandada em voo sobre o patio,
agora soterrada nos escombros.

Resta uma dinastia de aves órfãs.
Não fomos mais que dois, e éramos tantos.
Não fomos mais que dois, e éramos todos.

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Van Gogh

QUANDO ESTOU TRISTE ME TRANSFORMO EM ÁRVORE

Quando estou triste, se estou muito triste,
ramagens me aparecem nas espáduas,
na pele se acumula uma cortiça
e vigas de madeira são meus braços.
Dos meus cabelos pendem folhas mortas
sem esperança verde em novos brotos
nem consolos de azul sobre uma copa
que o coração desenha nos espaços.

Quando estou triste, se estou muito triste,
nascem da concha agreste destas mãos
as amêndoas amargas do silêncio
e uma seiva de fel corre em meus talos.

Expostos aos rigores da intempérie
dentro e fora de mim tremem os pássaros
que aninham nas ramagens do meu lenho
de sulcos boquiabertos, assombrados,
por ver como o pesar me torna espessa.

Quando estou triste me transformo em árvore.

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Jack Vettriano

NAUFRÁGIOS DE DOMINGO

Pois há um punhal rasgando a pele em tiras.
Pois há um incêndio calcinando o trigo.
E um sonho mau viaja pelos caminhos
onde correm os dias.

No curva enganadora de uma brisa
um barco se desviou do seu destino.
Há insólitos naufrágios de domingo
em outras avenidas.

Com a asa quebrada
um velho afeto jaz entre os arames
e falece nas farpas da memória.

Há que calar a alma
porque um punhal de olvido rasga a tarde,
porque um fogo de adeus arde nas rosas.

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Egon Schiele


RONDA


É demasiado tarde para escrever poemas.
Uma noite tão alta, tão tardia,
tão meia-noite em todos os relógios
que nem os olhos regam as palavras.

Ainda assim venho
do teto revestido com madeira,
de estantes altas onde dormem livros,
do sofá com o molde do meu corpo,
da luz difusa,
e dessas duas jarras de Veneza,
que corri a comprar
na hora da partida
rumo a outro porto
porque o verão havia terminado.

Venho, já vês, também dessas memórias.

Venho desde estes mesmos trastes mansos
com seu cariz de velhas coisas minhas,
com cor de sépia,
cheiro de pinho.

Venho de verso em verso
tateando a largura desta noite
porque por não te ver
eu trago cães famintos entre as pálpebras.

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Bernhard Gutman

HOUVE UM TEMPO DE ESPELHOS E DE PÁTIOS

Houve um tempo de espelhos e de pátios,
de umbrais e de silêncios,
de ausentes generosos que voltavam
caso a saudade fosse
um nó górdio na linha do crepúsculo.

Isso foi antes, quando os anjos eram
os pensamentos daqueles que me amaram.

Agora não.
Nem sequer as palavras me acompanham
nesta ausência de céu sobre o meu teto.



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Gustav Klimt



NÃO SOUBE REINVENTAR UM CÉU PARA ENCONTRARTE

Não soube reinventar
um céu para encontrarte.
Fiquei. Como quem fica por acaso,
como quem sai da frente de um espelho
e deixa ali a imagem.

E me tornei tão só que até a minha sombra
deixou de acompanhar-me.

Por isso o meu telhado ficou sendo
um cosmos de palavras.