sexta-feira, 11 de julho de 2008

LÁPIDES





















Foto de R. Jaurégui


Olá.
Faz de conta que eu chego e te saúdo, numa vênia gentil, um requebro da letra.
Antes de mais cabe dizer que sinto falta daqueles velhos tempos quando nos encontrávamos para contabilizar os despojos do dia, falar daquelas coisas, tão nossas desde sempre, que às vezes nem sequer havia que as nomear.
Aqui estão todos bem. As águas nos seus leitos. O mundo em alvoroço. A mim nada me importa. Eu sigo lendo tudo. Escrevo algumas vezes, só quando a voz se escapa pelas gemas dos dedos.
Sem mais notícias beijo a ideia da tua boca. Quero que saibas,apesar de eu saber que tu não sabes nada: hoje a tua morte me doi de uma maneira infame.
Abraços.



MONÓLOGO DO MORTO

Esta manhã amanheci pretérito,
sem mãos para agarrar a vida diária,
sem pés que me conduzam para o mundo
nem pálpebras que abram as auroras.

Não tenho que ordenar cosmogonias.
Amanheci caótico e silente,
sem o dever de consagrar absurdos.

Aranhas tecem teias nos meus dias.
A morte é um relógio sem ponteiros.

Há um território exíguo em minhas vértebras
onde um fantasma construiu castelos.

Não vai o sangue apregoando urgências.
Não há a memória de ter sido amado.

Esta manhã amanheci sem alma.


ENCANTADOR DE PÁSSAROS

Eu lhe chamava encantador de pássaros
porque na sua voz esvoaçavam pombas.
Havia ecos de ritual vudu
no dolorido jazz dos seus fonemas.

Chove sobre o sepulcro do encantador de pássaros.
As aves se acomodam nos seus ninhos
e alguns ciprestes verdes, quase negros,
movem-se como os dedos de um pianista
porque o vento, assobiando,
transita da sua lápide aos ciprestes
e retorna com som de reza e música.

Chove sobre o sepulcro e sobre o manicômio
onde os dementes rasgam seus vestidos,
quebram as unhas arranhando muros,
empapados de pranto e de impropérios
porque o vento, assobiando,
recorre o mausoléu da sua morte
e volta gotejando versos viúvos.

Fincada nos meus pés, diante desse sepulcro,
sob um céu de betume e aguaceiro
olho esta pedra que é tão só uma pedra
e cobre um homem que foi só um homem
enquanto o vento, assobiando,
recorre as minhas veias
e torna ao coração com um gemido.


















Paul Gauguin


A NEGRA

A morte me acompanha, comedida,
desde sempre ao meu lado e até ao fundo,
testemunhando o fado vagabundo
e a minha biografia mal vivida.

Contempla os meus amores com a vida,
meu coito masoquista com o mundo,
a demente mania em que me inundo
da ânsia de viver, descomedida.

Não é ciumenta, a Negra, aguarda inerme
para acolher-me em lápide musgosa
quando a vida desista de querer-me.

Espera que tropece a minha sorte
para afinal, alegre e jubilosa,
celebrar com o diabo a minha morte.


NÃO SEI QUEM CHORA

Toco o teu nome
feito de letra ausente e mau presságio.
Não sei quem chora dentro do silencio.

Teu hálito no cristal
inaugura neblinas.
Limpo o teu rosto
com dedos sujos do veneno dos meus lábios.

Toco na tua boca
onde os nós se desatam.
Não sei quem chora dentro desse espelho.

Poço de pesadelos mal sonhados,
cemitério de tumbas entreabertas,
onde se aninham pássaros perdidos
e um verso inacabado.
Não sei quem chora dentro do teu túmulo.


















Paul Cèzanne


ESQUINAS

Tropeço em tua morte nas esquinas,
escuto a tua voz nos meus caminhos,
insondável e atroz como um aviso
expressado em enigmas.

Anda um fantasma triste no meu pátio
afugentando as aves com os dedos.
O rumor entre as folhas, dos seus gestos,
assusta a voz dos pássaros.

Em tudo ao meu redor ouço o gemido
do som que me atará pelas costelas
e deixará um punhal feito de ausência
cravado entre os meus seios.


ANDORINHAS

Enfim morreste, assim, sem mais razão
que o fato de estar vivo
deixando viúva
e sem recinto público
a larga multidão dos nossos versos.

Resta o silêncio fúnebre enraizado
num pátio de limoeiros e glicínias
onde havia uma acácia e uma nogueira
e um ninho de andorinhas
que a cada madrugada
voavam rumo ao sul.

E as andorinhas regressavam sempre,
em busca dos pretéritos do tempo
e dos futuros grávidos de enigmas
que- ainda que elas não saibam-
não voltarão.