segunda-feira, 5 de março de 2012

AO SUL DOS NAUFRÁGIOS

Fotografia de Man Ray

Espelhos. Pátios. Umbrais. Silêncios. Ritos. Esquinas. Exílios. Naufrágios. Horas. Outonos. Janelas. Sombras. Pretéritos. Enigmas. Há palavras que me enunciam. Às vezes as pronuncio em versos. Em susurros ou aos gritos. Para que não morram na minha boca.

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Lady Avalon, by Jeshannon


Parto para Avalon de madrugada

(Para Claudia Schoenwetter)

Parto para Avalon de madrugada.
Levo o mistério dos cinco elementos,
a vara de amendoeira enfeitiçada,
o athame que governa os sete ventos,

o meu Livro das Sombras, minha espada,
minha vassoura de varrer lamentos,
os sortilégios de povoar o nada,
as ervas de cozer encantamentos.

Parto para Avalon, não sei dizer
quando volto, talvez na quinta-feira,
dependerá da bruma e do luar.

Se a bruma for abraço de envolver
e a lua estiver moura e feiticeira,
acho que não, não quero mais voltar.   

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Imagem do filme "Morangos silvestres", de Ingmar Bergman

CARTA IX

Há muito tempo não vinha escrever-te
poemas de exumar melancolias.
Chegou a primavera e sua boca.
Veio o verão com suas mãos azuis.
Tudo passou e não te disse: estou
tão próxima de ti pelo lado de dentro,
tão rente ao tracejar que a tua sombra
desenha nos caminhos do crepúsculo.

Não te contei que estive atarefada
cultivando milagres:
o menino, o jardim, e esses fractais
de nuvens numa suave geometria.

(Também não conta nada o pão ao trigo
nem o vinho aos vinhedos
e são tão consequentes.)

Volto a escrever porque te vi esta noite
atravessar o filtro dos meus olhos
tal e qual como és: no teu peito rasgado
o campanário de uma catedral,
numa das mãos o lápis e na outra o chicote,
e dois ponteiros cegos
perseguindo demoras pelas veias.

Recordei que houve um tempo em que não existias.

Eu era visceral como planta carnívora.
Usava fonte bookman old style
de preferência bold, cursiva, azul.
Era ágil, letal e literária
como um frustrado predador faminto
em selvas de papel.

(Nesse tempo escrevia
como quem joga uma garrafa ao mar.)

Então chegaste com o campanário,
o lápis, o chicote, o relógio no sangue,
e troquei minha selva pelo ofício
de decifrar palavras.

Agora sou tão mansa que ando bebendo o tempo.
Nómade num deserto de minutos,
até me assusta o vento do crepúsculo.

(Por isso escrevo sem outro propósito
mais que reconciliar os paradoxos.)

São necessárias muitas coisas dentro
e duas ou três fora
para dar às palavras a silhueta
de barco ou de punhal ou de jasmim.
Mas eu, que sou tão simples como um número,
apenas necessito duas asas
em voo raso sobre o mar bravio
seguido de um naufrágio
de incomensuráveis proporções.

Ou então de algum código de enigmas
que circule na fímbria dos relógios.

(Apenas nós sabemos que é de Bergman
o relógio dos Números do Tempo.)

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Oleo de Mike Worrall

Despojos de poemas naufragados

HORIZONTE

Acabo de avistar alguns destroços
ao sul dos meus naufrágios.

CADEADOS

Tive um amigo que me abria portas
que levavam a um mundo substantivo
de lógica brutal e infinita ternura.
Além dos cadeados
o mundo era um lugar onde eu estava
em paz comigo.

Tive um amigo que fechou a porta.


INTERMEZZO

Devo encontrar um rio onde lavar
as minhas túnicas.
Alguma margem onde descalçar as sandálias
e mergulhar os pés em água de juncais.

Devo encontrar a árvore
onde enforcar adeuses.

 SENSATEZ

Com prudência enterrou cada lembrança
sob um pó assassino de memórias.

COMPANHEIRO

Cada vez que te vejo caminar
recordo como eras quando tinhas asas.

GRAVIDEZ

No ventre de tudo o que quero te dizer
há um verso pulsando
com nove meses de germinação.

REPRIMENDA

Quando celebras
os ritos da maldade em meus altares
meus evangelhos ficam desfolhados.

NEGLIGÊNCIA

Era um Outono vago e negligente
que se esqueceu de desfolhar as árvores.

PEREGRINAGEM

Do nada em direção a parte alguma
viajava em seus humanos paradoxos.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

AO NORTE DOS ENIGMAS

Vidro de Lalique "Susana"

PENUMBRAS

Se eu tivesse um coração de estepe
fundarias aí teu território.

Mas no meu peito há um salão antigo
cheio de peças finas, delicadas,
que arrematei a licitar outonos,
nesses leilões da vida.

De uma patada rompes os espelhos,
destroças os desenhos do brocado,
estilhaças meus vidros de Lalique.

Resta incólume, a salvo dos teus dentes,
o cofre onde as penumbras são guardadas.


"Elle", Fotografia de Merrow

FOI ASSIM

Foi assim: uma espécie de desordem
no refluxo do tempo.

Insólito e absurdo.
A águia com vertigem das alturas.
Peixe com medo mórbido da água.
O personagem cujo nome órfão
não se enquadra na própria biografia.

Apesar disso
houve algo de belo e surpreendente
como uma igreja gótica na praia,
a neve na planície de Castilla,
esse voo de cisnes sobre um lago.
Ou então Times Square quando anoitece.

Às vezes foi pletórico
como um vinhedo em tempo de vindima,
um aroma de terra quando chove.
Ou melhor, o Concerto de Aranjuez
em jazz, por Miles Davis.

Foi assim. E depois já não foi nada.
Foi como se jamais houvesse sido


Fotografía de Lena Sergeeva
VÉU

De uma tumba a um destempo
estendemos um véu de paradoxos.

Não existe no risco dos meus mapas
um território aberto às colmeias:
se fosses mel eu não seria boca.

Se fosses fonte não seria sede.

Por outro lado
(há sempre o outro lado das hipóteses)
não existe na ronda dos teu cosmos
um rumo para o meu elíptico trajeto.

Se fosse cume não serias côndor.
Se fosse fera não serias caça.

E no entanto
(porque há sempre um "porém" ao queimar naves)
ao pensar-te veneno, sal, resina,
que lástima me dá não termos sido.


Oleo de Pablo Picasso
CARTA V

Falo-te desde o vento do crepúsculo,
de um outono estendido sobre o Norte
e uma pena que gira costa abaixo.

Omito mencionar as folhas secas
e a névoa debruçada nos portões.
Apenas conto que me assomo ao átrio
para chamar o sol.
Sempre aparece.

(Escreverei ensaios metafísicos
sobre a nudez exposta dos outonos.)

Venho contar a ronda dos meus dias
ou de um dia qualquer, entre outros tantos,
em que acabei rachando a superfície
ritual dos meus pretéritos.

Saí para mostrar Lisboa às memórias:
Subi a Mouraria.
Desci ao rio.
Voltei sobre os meus passos por calçadas
onde um dia deixei a pele em tiras
nas batalhas do ego e nas da carne.

Meus rastos peregrinos
eram cifras gravadas com punhal
no lugar onde dói meu inventário.

(Escreverei ensaios filosóficos
sobre a nudez exposta das esquinas.)

Enquanto crio fórmulas secretas
onde exorciso o tempo,
transitam meus gerúndios nos teus olhos
e nesse coração de sol e bruma
capaz de absolvição e de sentença,
ternura pertinaz, ódios escassos
e amor feroz de tigre suburbano.

(Escreverei ensaios cabalísticos
sobre a nudez exposta das palavras.)


Fotografia de Anka Zhuravleva
NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR

Eu nunca quis ser pássaro.
E não sei porque insisto em conservar as asas.

Por dizê-lo sem sombra de retórica,
me acomodo de bruços em algo que ameaça
ser uma reflexão de ordem sensorial:

Acabo de instalar no telefone
um poema sinfônico de Liszt.
Daí se infere um ego demitido
da minha geração Kerouak-Ginsberg.

E há outros sintomas:
me sinto um samurai em floresta de espelhos,
navego a clarabóia num barco sem convés.
Noto que só me falta, para não ser eu mesma,
adquirir uma casa na Toscana.

No entanto, isso não era previsível
quando deixei atrás as minhas margens
levando certa urgência em esquecer,
um guarda-chuva – pode ser que chova –
e sete lenços de dizer adeus.

Cheguei despaginada ao outro lado
desta longa e confusa travessia.
Mais me vale assumir que escorreguei da bússola
e caí no regaço do sistema.

Deveriam vender em algum quiosque
um breviário que ensine uma mulher
a não desescrever a própria história.

(O que há de escandaloso na poesia
é que falamos sempre de nós mesmos.)


Fotografía de Beatriz Morán

CARTA (IV)

Pensa em mim ancorada na neblina.

Levo oculto um colar de noites brancas
sob esta burka de um mistério novo.

Não é certo que tenha te inventado
para escrever de mim para comigo
as cartas que ninguém, nunca, responde.

De manhã ponho a mesa do café
para dezoito ninfas
abro a gaiola onde guardo os sátiros
e enfeito com grinaldas as soleiras
para ler tuas cartas
celebrando os meus ritos panteístas.

Cada dia decifro esses vestígios
do fardo das rotinas, das batalhas,
as pegadas dos sonhos no trajeto,
se faz neblina ou sol sobre a ramagem
onde penduras a pele de tigre
depois de destroçar as ventanias,
e avisto, desde longe, – sendo o caso –,
as bordas da ferida.

E se às vezes te escrevo como a quem não existe
é porque me dóis tanto
– danos colaterais dos sentimentos –-
que de doer me torno decassílaba.


Fotografia de Lena Khlebnikov

CARTA (III)

Teu silêncio é um campo de explosivos
a ponto de estalar dentro de mim.

Enquanto flui o susto em seus caudais,
corto o cabelo, podo as laranjeiras
e trato do jardim, junto os limões
que rodam pela terra do verão.

Digamos – por dizê-lo com hieróglifos –:
é melhor que me informe
aonde foste ser tu mesmo a sós,
indago de Isabel teu paradeiro
ou levo o teu cachorro pela trela
para rastrear teu cheiro pelo bairro.

(Me esquivo dos presságios imprudentes).

Releio Yourcenar para encontrar-me
com "a pequena alma errante, branda"
de Adriano, seu reino sem fronteiras,
seus desgostos de amor,
a lenta morte escrita.

(Terás ido a Chicago de emergência)
ou em férias ao campo).

Acabo de firmar novo contrato
para editar O Livro de Ismael
que nunca mais termino de escrever.

Chego a pensar o pior:
foste apressado do discurso ao beijo
e o coração não soube acompanhar-te.

(Me vejo percorrer La Recoleta
procurando o teu nome numa lápide).

Farei o que é devido nesses casos:
vou em peregrinagem de turismo,
me distraio tomando chás de menta
em Djema-a el Fna em Marrakech.

Talvez ponha um anúncio em algum quiosque
se busca um homem no limiar de um sismo
a oriente ou ocidente de Arenales,
tem marcas de guerreiro nas espáduas,
e dentro leva um duende
que transforma num púlpito o seu peito.

(Às vezes um selvagem que o habita
inaugura um abismo em cada sombra).

Voltarás – como o vento, voltas sempre –
ferido pela aguda lucidez
com que cruzas as ruas do absurdo.

Então eu te direi: te necessito
para reconduzir alguma estrela
que o ritmo desafine
na cadência do cosmos.

(Se cada coração conhece o seu limite
o do meu é uma linha em tua mão).



Lady in the water. Fotografia de Toni Frissell

CARTA (II)

Escrevo-te no verso de un ticket electrónico
desde um aeroporto fechado por decreto
de vulcánicas cinzas.
Quase não acredito
que hoje o céu haja sido interditado aos pássaros.

Sabes de que te falo: minha sorte viajeira,
e a ânsia de contarte
ideias que tomaram forma de labirinto:

Se em meu signo de ave migratória
que submisa ao seu fado devora latitudes
minhas asas quebrassem;
se na linha sutil do meridiano
que corta o meu exílio em hemisférios
acaso me perdesse,
levaria comigo ao despenhar-me
os fragmentos de ti de que sou cúmplice.

Em leito de sargaços jazeríam
enredados em algas, singrando entre despojos,
tua voz e essa lua suburbana,
teu Sul, nosso evangelho, o poço envenenado,
a chuva sobre o pátio, os dias de Dezembro,
o muro de glicínias, os espelhos e umbrais,
teu génio, teu carisma,
a memória de ti
e a ideia que cultivo dos teus olhos.

Já ves, penso em ti sempre,
e de tanto pensar-te me da pena
de arrastar teu fulgor nesta equipagem
ao esvair-se o hálito
com que em meio aos relâmpagos te chamo.

Assim, te deixo escrito nas estrelas:
se algum dia comigo se afogarem
esta parte de ti que foi tão minha,
o quanto me quiseste, o muito que te quis,
perdoa-me o naufrágio.


Fotografia de Cristina Alemparte
CARTA

Será outono aí. Será de noite.
Venho dos meus assuntos aos teus olhos.

Penso em ti sempre
com este amor de ar,
sem carne, sangue, pele ou incidentes,
com esmero de margens paralelas
e esta mania de oficiar meus ritos
nos altares do caos.

Faz muito que não sei notícias do teu cão.
Ainda não me contaste
como se comportou a primavera
nos muros do teu pátio.
Noto que não nos restam amigos em comum.

De mim te conto: agora uso chapéus
de feltro cor de mel quando te penso
e quando - como de hábito - estou louca,
um panamá genuíno, faixa preta,
que até me faz sentir quase normal.

Terminei de escrever aquele livro
por presumir que tenho algum talento.

Fui a Istambul de novo, porque sim,
só por causa das pombas que esvoaçam
desde a Mesquita Azul ao Corno de Ouro
às seis da tarde quando o dia apaga
e a voz do muezin chama ao adhãn
e me surpreendo no umbral das lágrimas
por nunca haver acreditado
numa alma imortal.

O não saber de ti me dilacera.
Com arames de farpa está cercado
o pátio onde acampam as milícias
que sufocam as minhas rebeliões.
E até mesmo a nogueira
que tem teu nome escrito em cada rama
morreu de espanto.

Essas coisas de mim venho contar-te
e, como ves, repito sempre o mesmo:
penso em ti sempre,
com este amor de ar
e vocação de caos.


The Rider. Fotografía de Anka Zhuravleva

QUANDO

Quisera estar aí quando é Dezembro
e chove sobre o pátio;

quando nas madrugadas
conversas com as árvores,
contando-lhes insónias e agonias,
e estreias alvoradas redentoras
para esses dias que nasceram mortos;

quando a luz de uma lâmpada de rua
desenha a tua sombra nas fachadas
e a noite debruçada nos balcões
cuida teus passos;

quando o teu cão profana aquele altar
onde cego, imortal, morava Borges
e te enche de ira e aflição
essa imprevista forma de penúria.

Quisera estar aí quando estás louco
quando me queres tanto
quando às vezes me odeias,
e laceras-me as costas entre credos,
e entrelaças teu nome em meus enigmas.


Fotografia de Lena Sergeeva

ENTRE DUAS GUERRAS

Venho entre duas guerras, quando emergem
dos despojos as ânforas antigas
e o vinho a sorvos sabe a um armistício,
um credo entre silêncios.

Repousam os corcéis das minhas tribos,
que num tropel de cascos sobre o pó
resgataram teu nome de entre as sombras.

Entre duas batalhas
eu venho a ti pequena e desarmada
sem manual de instruções para os meus medos.

sábado, 29 de maio de 2010

OFICIANDO O RITO DE ENREDAR AS HORAS

Fotografia de Tamara Andreeva

SOMBRAS

Eu velarei a tua sombra onde
o tempo com seu séquito de outonos
transite o caos para além das pálpebras
e seguirei a marca dos teus passos
que um dia foram bússola, quadrante
e arca para os lúgubres despojos
da errática odisseia que empreendi
em direção ao sul dos meus naufrágios.

Onde, grave e remota, a tua sombra
esteja, a minha sombra – teu reflexo –
ali estará, na borda do abandono,
para cifrar o signo dos percursos
que levam ao revés dos teus enigmas
e recorrer contigo lado a lado
os páramos sem fim do esquecimento
e os infernos vorazes da memória.

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Pablo Picasso


GERÚNDIO

Esquecer-te não é o que eu pensava:
vastidão de vazios em subserviência,
a incógnita encontrada
numa equação mental de utilidades
nem toalha de cinza que recobre
migalhas de um banquete consumido
ou névoa que se estende até à linha
de um horizonte ao qual voltei as costas.

Pois não. É tempestade reincidente,
o vendaval que arrasta esses despojos
de um antigo naufrágio
até à praia dos meus egoísmos.

Ou então labareda
que vai abrindo sulcos sobre a pele,
calcinando a fronteira do intangível.

Esquecer-te é cumprir essa sentença
perpétua, inexorável, reiterada.
A gente não esquece:
vai esquecendo.
Construção absoluta, estado durativo.
É um gerúndio

eternamente

sendo.


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MUJERES POETAS INTERNACIONAL

"Soy todo lo que puedo ser, soy poeta, soy mujer"
(slogan del Movimiento Mujeres Poetas Internacional)

Poema vencedor no 1º Concurso Internacional de Poesia "Yo soy mujer" promovido por Movimiento Mujeres Poetas Internacional

CREDO DE MUJER

Puedo soportar todo. Nada es insoportable:
lo que me dilacera, lo que me hace pedazos,
el tajo de la daga, la cal de los abrazos,
el beso envenenado, el golpe insoslayable.

Soy hecha de coraje con casco reciclable.
La carne abierta en trizas, destrozada a zarpazos,
me recojo del suelo y apaño los retazos,
reúno mis fragmentos. Y nada es insalvable.

Es todo lo que tengo: la garra que rebrota,
que me hace restaurar las ruinas del flagelo
y continuar entera y estar en paz conmigo.

La clave es el silencio que al espanto agarrota.
No me concedo el grito. No me permito el duelo.
Puedo soportar todo. Resisto. Y sumo y sigo.

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Aristide Maillol

CAMBALACHO

De repente uma estrofe - e por que não? -
uma única, suja, maculada,
impiedosa e violenta,
sem pesares nem lutos,
uma flecha direto na pupila
que revele os enganos e perjúrios,
o desfalque que dei nas realidades,
os sonhos dissipados,
a pouca compaixão, a indiferença,
a fraude nos afetos, a tramóia
que perpretei na minha biografia:
uma estrofe que nasça das entranhas
e se enferme na sílaba penúltima,
e faleça na última fronteira:
há sempre um outro som além do canto
e um novo território além do verso.

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Lylia Cornelli

NÃO FOMOS MAIS QUE DOIS

Não fomos mais que dois e um evangelho
manuscrito em versículos hereges,
um dúo de demônios penitentes
adito em descifrar os sortilégios.

Éramos os guerreiros de um exército
de anjos com estigmas de febre,
uma obstinada multidão de duendes,
uma constelação, dois hemisférios.

Pássaros resgatados das gaiolas,
uma bandada em voo sobre o patio,
agora soterrada nos escombros.

Resta uma dinastia de aves órfãs.
Não fomos mais que dois, e éramos tantos.
Não fomos mais que dois, e éramos todos.

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Van Gogh

QUANDO ESTOU TRISTE ME TRANSFORMO EM ÁRVORE

Quando estou triste, se estou muito triste,
ramagens me aparecem nas espáduas,
na pele se acumula uma cortiça
e vigas de madeira são meus braços.
Dos meus cabelos pendem folhas mortas
sem esperança verde em novos brotos
nem consolos de azul sobre uma copa
que o coração desenha nos espaços.

Quando estou triste, se estou muito triste,
nascem da concha agreste destas mãos
as amêndoas amargas do silêncio
e uma seiva de fel corre em meus talos.

Expostos aos rigores da intempérie
dentro e fora de mim tremem os pássaros
que aninham nas ramagens do meu lenho
de sulcos boquiabertos, assombrados,
por ver como o pesar me torna espessa.

Quando estou triste me transformo em árvore.

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Jack Vettriano

NAUFRÁGIOS DE DOMINGO

Pois há um punhal rasgando a pele em tiras.
Pois há um incêndio calcinando o trigo.
E um sonho mau viaja pelos caminhos
onde correm os dias.

No curva enganadora de uma brisa
um barco se desviou do seu destino.
Há insólitos naufrágios de domingo
em outras avenidas.

Com a asa quebrada
um velho afeto jaz entre os arames
e falece nas farpas da memória.

Há que calar a alma
porque um punhal de olvido rasga a tarde,
porque um fogo de adeus arde nas rosas.

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Egon Schiele


RONDA


É demasiado tarde para escrever poemas.
Uma noite tão alta, tão tardia,
tão meia-noite em todos os relógios
que nem os olhos regam as palavras.

Ainda assim venho
do teto revestido com madeira,
de estantes altas onde dormem livros,
do sofá com o molde do meu corpo,
da luz difusa,
e dessas duas jarras de Veneza,
que corri a comprar
na hora da partida
rumo a outro porto
porque o verão havia terminado.

Venho, já vês, também dessas memórias.

Venho desde estes mesmos trastes mansos
com seu cariz de velhas coisas minhas,
com cor de sépia,
cheiro de pinho.

Venho de verso em verso
tateando a largura desta noite
porque por não te ver
eu trago cães famintos entre as pálpebras.

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Bernhard Gutman

HOUVE UM TEMPO DE ESPELHOS E DE PÁTIOS

Houve um tempo de espelhos e de pátios,
de umbrais e de silêncios,
de ausentes generosos que voltavam
caso a saudade fosse
um nó górdio na linha do crepúsculo.

Isso foi antes, quando os anjos eram
os pensamentos daqueles que me amaram.

Agora não.
Nem sequer as palavras me acompanham
nesta ausência de céu sobre o meu teto.



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Gustav Klimt



NÃO SOUBE REINVENTAR UM CÉU PARA ENCONTRARTE

Não soube reinventar
um céu para encontrarte.
Fiquei. Como quem fica por acaso,
como quem sai da frente de um espelho
e deixa ali a imagem.

E me tornei tão só que até a minha sombra
deixou de acompanhar-me.

Por isso o meu telhado ficou sendo
um cosmos de palavras.

domingo, 24 de maio de 2009

EU TE DIREI EM VERSOS


A poeta conseguiu plasmar em versos de requintada fatura, sem excentricidades, com um léxico preciso e até com certo laconismo mas com uma força poética iniludível, seu pensamento e seu sentir sobre tudo aquilo que conforma a matéria dos problemas fundamentais do homem: o amor, o destino, a morte. Na obra de Tania Alegria encontramos o prazer do verso e a armonia de uma obra poética construida com talento e beleza. A poesia de uma dama.
Rafaela Pinto, poeta e escritora (Argentina)




LEGADO

Quando eu morrer
num recanto do sótão
acharão um baú velho de mogno
com o modesto saldo dos meus bens:
meu legado de trastes
isento de tributos.

Nunca guardei por mais de uma semana
cartas de amor,
postais marcando ausências,
números telefônicos,
fotografias.
Não acharão nenhum amor-perfeito
entre as vetustas páginas de um livro
nem guardanapos sujos de poemas.

No meio dos objetos já sem uso
está um par de sapatos de verniz
que levavam meus pés para encontrar-te
(ninguém há de notar que eram asas);
algumas joias falsas, reluzentes,
como os meus olhos sempre que eu te via;
roupas fora de moda
onde ninguém verá
– porque não são visíveis as lembranças –
no meu vestido a mancha dos teus braços.


SEMPRE QUE MORRO

Sempre que morro, morro de naufrágio:
uma ilusão maior, mais atrevida,
mergulho fundo e rouba a minha brida
a morte sem presságio.

Não me cabe o direito de sufrágio.
Encontra-me em geral desprevenida
quando chega, avarenta e travestida,
a sorte por seu ágio.

Por lapso ou negligência
me afogo ingénua e dócil, com confiança.
Usualmente pereço de inocência.

Sucumbo de esperança,
de ingratidão, de perda, de inclemência.
Algumas vezes morro por vingança.


DE ENCRUZILHADA

Estou como quem vai, mochila às costas,
como quem viesse e não chegasse nunca,
viajante de pretéritos momentos,
estou só de passagem,
estou de encruzilhada.

Deixo vestígios, ecos de penúrias,
meu sangue ainda escorre na calçada
e em cada esquina, sob a luz da rua,
há pocinhas de pranto mal chorado
que esqueci de beber na hora da partida.

Talvez me encontres – se procuras muito –
nalgum porto, num bar mal afamado,
onde aposto nos naipes que te esqueço
e perco sempre.


EU TE DIREI EM VERSOS

Eu te direi em versos porque consta que a prosa
exige todavias alheios aos Outonos
das ramagens que o vento desfolhou.

Eu te direi em versos que já fomos deuses.

Portávamos olhares luminosos,
tínhamos mãos abertas como cálices
onde cabia o vinho de outros vasos,
nossas palavras cúmplices e alegres
recorriam às cegas os trajetos
buscando madressilvas redentoras
que resgatassem muros
da sua solidão desamparada.

Eu te direi em versos que já fomos Nós.

Mas um dia partiste em um ocaso
onde se inauguravam os pretéritos
e eu ordenei ao clã dos meus fantasmas
que mantivesse abertos os caminhos
para que entrasse pelas minhas pálpebras
esse pó assassino de distâncias
que se eleva do chão
se a tua voz galopa nos crepúsculos.


VENHO MATAR-TE

Venho matar-te.
Tardei em decidir-me esses dois séculos
que passei recitando um solilóquio
diante do espelho.

Tenho olhos de cal de tanto odiar-te.

A pele escorregou sem credo que a firmasse.

Descarnada por dentro, abjeta, despojada,
a língua em fel diluída, desfeita em impropérios,
com a boca repleta de blasfêmias,
venho matar-te
empunhando, homicida,
este punhal de versos.

(De InVerso, Ed. Movimento, Crivella, AlegrePOA, Porto Alegre, RS, Brasil)

sábado, 9 de maio de 2009

MEMORIAL DE EXORCISMOS

Tania Alegria conhece o lugar preciso dos versos, daí a celebrada sonoridade dos mesmos. Igualmente conhece, palmo a palmo, os lugares do amor e das esperas, esperas que se tornam pombas hieráticas à intempérie; ela se deixa levar por esse círculo vicioso e travesso das palavras através das quais sua inspiração, sua linguagem, elevam à máxima expressão artística a sua voz imperiosa e cheia de surpresas. E tudo é fina trama. E tudo é paixão. E tudo é submersão. E tudo é Verbo ou versos que deslumbram e relampagueiam.

Delfina Acosta, poeta e escritora (Paraguay)


EVANGELHO DE EXORCISMOS

Chegas com o carisma, o verbo, o signo
e o gesto amável de amputar as sombras.
Impenitente emerges de outro abismo,
desde um lugar sem nome em minha história.

Te esperava no pórtico de gritos
onde se desordenam as demoras
cifrando um evangelho de exorcismos
nos ritos sigilosos da memoria.

Chegas como quem não, como quem passa
e ao azar se detém e por acaso
se vê e se reconhece em meus espelhos.

Faz séculos que eu teço uma ramada
para enlear-te as horas nos meus braços
e enredar tua voz nos meus silêncios.


ESPERANDO O AMOR SEM CRER QUE EXISTA

Parto para a paisagem das desertas
planícies que há no mapa do meu peito,
onde há um pátio com aroma a cedros
e silêncios se erguem como ameias.

Ali moram meus anjos de tristeza,
os diabos que percorrem meus segredos
e, oculta do outro lado dos espelhos,
a menina que fala com as feras.

Estarei revestida de invisível,
sem forma ou gravidade, como nuvem,
utópica, qual eixo de uma abcissa,

entrançando hipotéticas elipses
com este ódio fiel e este costume
de esperar pelo amor sem crer que exista.


MEMORIAL DA ESPERA

Chegou a chuva com seus dedos de água
tamborilando a face dos cristais
e escreveu os teus signos nas janelas.
E veio um árduo frio pelas estradas
onde andam em geral os desamores,
meteu-se pelo viés dos meus umbrais
e me disse o teu nome por enigmas.

Eu me apressei em enfeitar a vida
com as coisas que luzem as esperas:
enchi vasos com versos e impudores
e no teto preguei clarões de lua.
Para que não te aflijas com meus lutos
guardei meus mortos em caladas lápides,
para que não te doam meus pesares
no jardim enterrei os infortúnios.
Para os teus lábios de promessa e beijo
minha boca sequiosa, envenenada,
engendrou na inquietude das demoras
um memorial de infernos e poemas.


SUL

Tenho um baú cheio de Sul no sótão
e um código cifrado para abrir a tampa:
Deve-se dizer golpe sem mencionar o sangue na ferida,
deve-se dizer trem sem referir a gare,
e outras palavras, como pão e mãe,
signos com a veemência de uma proa de barco
rompendo as ondas no oceano aberto.

Há que dizer exílio.

Tenho restos de Sul como migalhas
nas tigelas da infância.
Há demasiado verde na memória,
afectos de joelhos
nas escuras cavernas do passado,
verdades como punhos que mutilam
cada proposição do silogismo
em que se ampara a armação da carne.

Alvoroça um escândalo de trópicos
essa suspeita paz dos meus subúrbios
e é por isso que os cães do esquecimento
rastreiam margens,
farejando nos trilhos mar a dentro
o sangue dos meus passos
sempre que parto com o exílio às costas.


ARAUTOS

Nessa garoa se adivinham sombras
que com as mãos molhadas
me indicam o caminho para os bosques
onde murmuram duendes
com vozes de madeira.

Sei que desde o umbral dos desconsolos
és tu quem chama.

E no entanto me sabe a rebeldia
este gosto de sândalo na boca.
Soa a passos de coxo esse rumor
das asas do meu anjo subversivo.
Tenho umas ganas loucas de sujar teu rosto
com os cravos vermelhos macerados
que um dia destinei ao meu sepulcro.

De modo que não venham os arautos
anunciar-te com líricos pregões.

No caso de que venha a arrepender-me
dos meus irreprimíveis arrebatos
venho deixar na tua porta um beijo
e um poema canalha.


UM PUNHADO DE ARGILA

Às vezes te despertas e é como se morresses
de espanto e de estranheza
ao vislumbrar o dia, discernir seus escolhos,
avaliar quantos passos te restam para a noite.
Árido chão espera a marca dos teus dedos,
não tens mais que um punhado de argila para erguer
a colossal muralha que guarda os teus silêncios.

Tão só que a tua sombra
não cruzará contigo o grés dos pórticos,
tão muda que as palavras
não acharão o rumo que leva aos teus ouvidos,
construirás, obstinada, as cercas do teu pátio.

E nada chegará incólume ao crepúsculo.

Virá a lua clara iluminar despojos
enquanto dos teus olhos os pássaros emigram.
Amanhã voltarás, sem outros argumentos
além das tuas mãos e um punhado de argila,
para erigir os muros que encerram teus silêncios.

(De Memorial de Exorcismos, Colección Biblioteca Digital Siglo XXI)

sexta-feira, 11 de julho de 2008

MULHER DIANTE DO ESPELHO














Fotografia de Beatriz Morán

MULHER DIANTE DO ESPELHO

Pupilas de cristal, olhos de assombro,
ela me olha, ela está olhando
os resíduos de todas as batalhas,
os despojos de todos os naufrágios.

Vê os sulcos lavrados no meu rosto,
talhados com adaga e com arado;
quanto de servidão foi necessária
para gravar as marcas do chicote;
que árduos e inclementes os invernos
tornaram meus cabelos prateados.

Desde o cristal do espelho me contempla,
e me pergunta, está me perguntando
onde estará a que um dia foi menina
e às vezes aos meus olhos se assomava.
Terá caído –pensa- nas contendas
em que se confrontou com deus e o diabo.

Desde o cristal me olha, inquieta e triste,
seus olhos nos meus olhos espelhados,
e ao não se descobrir no seu revés
desvia o rosto e apaga a minha imagem.






















Pablo Picasso


HORIZONTES

Espera-me no molhe de um porto milenário
pois trago no regaço dois séculos de cismas
que percorri aos tropeços, remando um ideário
com remos de sofismas.

Pesada de horizontes se pôs minha fortuna
e algum desígnio injusto fez meu fado tristonho;
e no entanto estarei, na época oportuna
onde nasce o teu sonho.
















Pablo Picasso


ÁNGELUS

São seis horas da tarde.
Uma mudez de lápide
se tomba com fragor sobre os meus versos
enquanto à flor da pele, lume e almíscar,
se inauguram pecados
antecipadamente redimidos.

Do claustro dos meus lábios
fugiram as palavras que eram minhas:
fiquei sem os rosários
que costumava usar para rezar-me.

Abraçada aos meus ecos primordiais
quero dizer a música
do choro de um recém nascido,
o trovão que alucine a voz dos pássaros
e um gemido de amante
que cale a voz enorme do silêncio.

Às seis horas da tarde
no pórtico de todas as mordaças
ressoa um Ángelus cantado por demônios.






















Pablo Picasso


AO PÉ DO CALENDARIO

Volto-me para trás e contemplo, assombrada,
esse largo trajeto que recorri aos tropeços.
É tão longa e penosa a soma dos meus passos,
foi tão espesso o pó de cada encruzilhada.

Da mochila rasgada gotejaram as horas
e leve se tornou a carga de utopias,
perdidas as certezas, extraviados os credos,
olho com desconsolo minhas pobres pegadas.

Observam-me os que cruzam comigo nesta senda,
surpreendidos do mísero cariz dos meus andrajos,
nos cabelos carrego serpentes entrançadas
nas pontas dos meus dedos há garras e não unhas.

Ninguém busca os meus olhos onde moram os medos
nem procura o meu ombro onde não há refúgio,
sabem que não me resta mais que o lenho que arrasto
e o punhal escondido no viés dos meus seios.

Termina aqui o caminho. Aqui acaba a viagem.
Sento-me nesta pedra ao pé do calendário,
a alma ao rés do chão, esperando esse encontro
que combinei um dia com um velho demônio.






















Pablo Picasso


ESTE DOMINGO

Este domingo sabe a morte antiga.
O vento se perdeu nalgum atalho,
esta tarde tem cara de inimiga
e me acena com gestos de espantalho.

Este domingo cheira a bruxaria.
No meu sótão mental mora um demônio
com síndrome servil de idolatria
que se alimenta de oração e amônio.

Salto na amarelinha dos pesares,
mastigando pedaços de vingança
enquanto a minha sede pede mares
e se afoga nuns tragos de esperança.






















Pablo Picasso


ESPERO UMA PALAVRA

Espero uma palavra à medida
das incomensuráveis desventuras;
lógica, consequente e natural
como o braço e a mão.

Espero uma palavra, acendo luzes,
me penso vento sul, frequento esquinas,
vagueio nos meus próprios descaminhos
e para não pensar
na falta que me fazes
piso descalça sobre vidros rotos.

Espero uma palavra
que seja tua e caiba
nesta ferida.























Pablo Picasso


ESTÁ TUDO BEM

A luz cintila sobre o muro branco
onde rosas morenas se espreguiçam.
O ar é pouco mais que uma intuição
que resbala na pele e cheira a pinhos.
A manhã está em paz. Vai tudo bem.

E entretanto, tu, tão desvalida,
tão pálida, tão suja de tormentas,
como se um vendaval feroz houvesse
demolido as ameias do teu patio.
Há musgo úmido no teu cabelo,
nas tuas mãos se enredam folhas tristes
e peito adentro uiva uma matilha
olfateando os pontos cardeais
para cheirar colheitas incendiadas.
Trazes as unhas sujas de carvão
tal foi a sanha ao escavar a noite.
Nas tuas costas tens manchas de líquen
por haver-te deitado em tantas tumbas.

Acalma-te. Só há cheiro de pinhos,
alvorada serena, vida mansa,
os pintassilgos cantam nas ramagens.

Não há tornados destroçando bosques
nem incêndios na seara dos exilios.
A manhã está em paz consigo mesma.
Calma, Tania Alegria. Tudo bem.






















Pablo Picasso


FORJAR SILENCIOS

Sobreviver -disso às vezes se fala-
mais além das estritas contingencias,
despida e sem pretérito,
desessencial.
Sem as amarras do esqueleto pobre
e da não transcendente
estratégia de ser.

Forjar silencios mais além da boca
onde todos os ecos se sepultam.
Sobreviver - disso às vezes se fala -
em absoluto estado de inocência,
sem punição.

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PÁTIO ANDALUZ
















Fotografia de Redi


PÁTIO ANDALUZ

Inaugura o aroma dos damascos,
o murmúrio do vento nas roseiras
o sono dos jasmins na paz da sesta
os mosaicos do pátio em preto e branco.

Vê que o tempo não rompa com seu passo
os enredos sutis das trepadeiras
para que não se escapem essas lendas
esculpidas nos muros empedrados.

Cuida que o sol dançando nas ramadas
cintile no arabesco da nascente
e no insensato verde da folhagem.

Celebra o sortilégio, o som da água:
minha alma tem encontro com teu duende
nalgum pátio andaluz às três da tarde.






















Henri Matisse


LUA

Meus lábios que não te chamam
são selados em segredo,
não posso dizer teu nome
pois a lua está em zelos,
seus olhos de prata em ânsias
por ver teu corpo, moreno.

Com uma rosa nos dentes,
ai, mouro, estou te mordendo.


Meu corpo que te reclama
na noite estende o seu leito
e te esperam meus fascínios
nos velhos umbrais do tempo,
ansiando pelo teu corpo
que sabe a menta e deserto.

Com uma rosa na orelha
te escuto no som do vento.

Quando a lua me descubra
a enredar-te em meus bruxedos
e pôr-me em pontas de pés
para beijar teus cabelos...
Ai, que se ponha encarnada!
Ai, que morra de desejo!

Com uma rosa no ventre
minhas cadeiras maneio.
















Henri Matisse


TAÇA

Me enfeitei com madressilvas
para esperar-te, moreno,
modelei minha cintura
ao círculo dos teus dedos.
Enquanto isso sonhava
com tua pele de pêssego.

Trazes prazeres guardados
entre os gemidos do vento.

Úmida de inquietas pressas
minha boca não tem pejo,
língua de ave embriagada
busca em voraz esbracejo
onde caibam os meus lábios
nos espaços do teu peito.

A noite, lençol de seda
onde se deita o silêncio.


Tuas mãos são peregrinos
que recorrem meus trajetos;
com dentes de leão faminto
minha carne vais mordendo
e o manancial do teu corpo
enche a taça do desejo.

Com a vassoura da aurora
as nuvens varrem o tempo.




















Henri Matisse


SOMBRA

Minha sombra beija a tua
com boca de vinho espesso
enquanto esperam meus lábios
a mordida do teu beijo:
que deixe um travo de sangue
no caudal do meu desvelo.

Nas pregas da tua sombra
estão passeando os meus dedos.

Minha sombra no teu ombro
traça as linhas de um esteiro
para que não te extravies
quando busques o meu peito.
Te esperam meus impudores
pelas esquinas do vento.

Entre as mãos da tua sombra
estão pulsando os meus seios.

Minha sombra deixa marcas
com a língua do veneno
do teu pescoço ao teu ventre
num rio de gozo e segredo.
No mar da minha saliva
singra o teu corpo, moreno.

Nas ondas da tua sombra
estão dormindo os meus medos.



















Henri Matisse


MOURA, TORNEI-ME MOURISCA

Moura, tornei-me mourisca,
enteada de um deus alheio
e me dizem que é pecado
querer tanto como quero
a quem sustenta o Crescente
com punhos de sarraceno.

Enlaçando as oliveiras
nos teus braços estremeço.

Só o teu corpo é sagrado
no igreja dos meus lamentos;
a oração da minha língua
ardendo em mel e veneno
te reza de cima abaixo,
te queima como um inferno.

Colhendo cachos de uvas
nos teus sonhos eu desperto.

Os jasmins na minha horta
se balançam num maneio
quando o teu potro de ânsias
cavalga sobre os meus ermos
e os gemidos do meu sangue
quebram a face do espelho.

O Genil nasce em teus olhos
e no teu rio eu navego.






















Henri Matisse


PÁTIO

Furtiva venho ao teu pátio
na ausência do cavaleiro
que vai pelo Mulhacén
como um pária bandoleiro
por não ceder suas crenças
a um rei e a um deus estrangeiros.

Posso sentir teu aroma
de tigre acossado e fero.

Para não deixar pegadas
no teu pátio de arabescos
venho descalça e pequena
enroupada em meus segredos
e até os gerânios se assustam
quando neles te rastreio.

Têm o cheiro do teu suor
as flores do limoeiro.

Se me encontras semearás
com o teu brio sarraceno
no meu ventre um filho mouro
que me matará de medo
quando seguir os teus passos
de nômade e de guerreiro.

Ai, se não fosse mourisca!
Ai, se te quisesse menos!























Henri Matisse


SONHO

Da minha túnica branca
a noite fez um veleiro
destapando os meus quadris
revelando os meus segredos;
me despojou de vestidos
o aroma do limoeiro.

Resvalavam como peixes
teus olhos sobre os meus seios.

- Habibi a’oyonak maa’aya.
(escutava num arpejo
tua voz nos meus ouvidos).
Não me tocavam teus dedos
e ainda assim me estremecia
ao sopro do teu alento.

Deslizava no meu corpo
o caudal do teu desejo.

- Habibi, a’oyonak kifaya
Murmuravas em segredo
Eu te respondia em sonhos:
- Habibati és meu eleito.
A noite se desvelava
repetindo os nossos ecos.

Um milagre se escondia
no meu pátio de silêncios.
___________________________________
Habibi: meu amor (o homem referindo-se à mulher)
habibi a’oyonak maa’aya: meus olhos estão contigo
habibi, a’oyonak kifaya: meu amor, isto me basta
habibati: meu amor (a mulher referindo-se ao homem)
___________________________________















Henri Matisse


UMBRAL

Não atravesses o umbral:
deste lado está o inferno
onde te danço descalça
sobre a ânsia dos meus lenhos,
em chamas vivas que lambem
e abrasam quando te penso.

Desde a tua mão à minha
a noite estende o seu lenço.

Não transpasses esses vidros
porque sangrarão meus medos
se as tuas mãos feiticeiras
destroçam meus amuletos.
Desliza em mim teu olhar
desde o saguão do desterro.

Da tua boca até à minha
um pássaro voou perto.

Modela-me nesse instante
quando em teu olhar me vejo
para que more em teus olhos
assim como encantamento,
como a asa de uma pomba
presa nas cordas do tempo.

Entre o teu rio e os meus sulcos
dois abismos e um espelho.

_______________________________


















Foto de Granada desde o Albaicín, com vista do
Palácio da Alhambra e a Sierra Nevada