Vidro de Lalique "Susana"
PENUMBRAS
Se eu tivesse um coração de estepe
fundarias aí teu território.
Mas no meu peito há um salão antigo
cheio de peças finas, delicadas,
que arrematei a licitar outonos,
nesses leilões da vida.
De uma patada rompes os espelhos,
destroças os desenhos do brocado,
estilhaças meus vidros de Lalique.
Resta incólume, a salvo dos teus dentes,
o cofre onde as penumbras são guardadas.
FOI ASSIM
Foi assim: uma espécie de desordem
no refluxo do tempo.
Insólito e absurdo.
A águia com vertigem das alturas.
Peixe com medo mórbido da água.
O personagem cujo nome órfão
não se enquadra na própria biografia.
Apesar disso
houve algo de belo e surpreendente
como uma igreja gótica na praia,
a neve na planície de Castilla,
esse voo de cisnes sobre um lago.
Ou então Times Square quando anoitece.
Às vezes foi pletórico
como um vinhedo em tempo de vindima,
um aroma de terra quando chove.
Ou melhor, o Concerto de Aranjuez
em jazz, por Miles Davis.
Foi assim. E depois já não foi nada.
Foi como se jamais houvesse sido
VÉU
De uma tumba a um destempo
estendemos um véu de paradoxos.
Não existe no risco dos meus mapas
um território aberto às colmeias:
se fosses mel eu não seria boca.
Se fosses fonte não seria sede.
Por outro lado
(há sempre o outro lado das hipóteses)
não existe na ronda dos teu cosmos
um rumo para o meu elíptico trajeto.
Se fosse cume não serias côndor.
Se fosse fera não serias caça.
E no entanto
(porque há sempre um "porém" ao queimar naves)
ao pensar-te veneno, sal, resina,
que lástima me dá não termos sido.
Oleo de Pablo Picasso
CARTA V
Falo-te desde o vento do crepúsculo,
de um outono estendido sobre o Norte
e uma pena que gira costa abaixo.
Omito mencionar as folhas secas
e a névoa debruçada nos portões.
Apenas conto que me assomo ao átrio
para chamar o sol.
Sempre aparece.
(Escreverei ensaios metafísicos
sobre a nudez exposta dos outonos.)
Venho contar a ronda dos meus dias
ou de um dia qualquer, entre outros tantos,
em que acabei rachando a superfície
ritual dos meus pretéritos.
Saí para mostrar Lisboa às memórias:
Subi a Mouraria.
Desci ao rio.
Voltei sobre os meus passos por calçadas
onde um dia deixei a pele em tiras
nas batalhas do ego e nas da carne.
Meus rastos peregrinos
eram cifras gravadas com punhal
no lugar onde dói meu inventário.
(Escreverei ensaios filosóficos
sobre a nudez exposta das esquinas.)
Enquanto crio fórmulas secretas
onde exorciso o tempo,
transitam meus gerúndios nos teus olhos
e nesse coração de sol e bruma
capaz de absolvição e de sentença,
ternura pertinaz, ódios escassos
e amor feroz de tigre suburbano.
(Escreverei ensaios cabalísticos
sobre a nudez exposta das palavras.)
NA PRIMEIRA PESSOA DO SINGULAR
Eu nunca quis ser pássaro.
E não sei porque insisto em conservar as asas.
Por dizê-lo sem sombra de retórica,
me acomodo de bruços em algo que ameaça
ser uma reflexão de ordem sensorial:
Acabo de instalar no telefone
um poema sinfônico de Liszt.
Daí se infere um ego demitido
da minha geração Kerouak-Ginsberg.
E há outros sintomas:
me sinto um samurai em floresta de espelhos,
navego a clarabóia num barco sem convés.
Noto que só me falta, para não ser eu mesma,
adquirir uma casa na Toscana.
No entanto, isso não era previsível
quando deixei atrás as minhas margens
levando certa urgência em esquecer,
um guarda-chuva – pode ser que chova –
e sete lenços de dizer adeus.
Cheguei despaginada ao outro lado
desta longa e confusa travessia.
Mais me vale assumir que escorreguei da bússola
e caí no regaço do sistema.
Deveriam vender em algum quiosque
um breviário que ensine uma mulher
a não desescrever a própria história.
(O que há de escandaloso na poesia
é que falamos sempre de nós mesmos.)
CARTA (IV)
Pensa em mim ancorada na neblina.
Levo oculto um colar de noites brancas
sob esta burka de um mistério novo.
Não é certo que tenha te inventado
para escrever de mim para comigo
as cartas que ninguém, nunca, responde.
De manhã ponho a mesa do café
para dezoito ninfas
abro a gaiola onde guardo os sátiros
e enfeito com grinaldas as soleiras
para ler tuas cartas
celebrando os meus ritos panteístas.
Cada dia decifro esses vestígios
do fardo das rotinas, das batalhas,
as pegadas dos sonhos no trajeto,
se faz neblina ou sol sobre a ramagem
onde penduras a pele de tigre
depois de destroçar as ventanias,
e avisto, desde longe, – sendo o caso –,
as bordas da ferida.
E se às vezes te escrevo como a quem não existe
é porque me dóis tanto
– danos colaterais dos sentimentos –-
que de doer me torno decassílaba.
Fotografia de Lena Khlebnikov
CARTA (III)
Teu silêncio é um campo de explosivos
a ponto de estalar dentro de mim.
Enquanto flui o susto em seus caudais,
corto o cabelo, podo as laranjeiras
e trato do jardim, junto os limões
que rodam pela terra do verão.
Digamos – por dizê-lo com hieróglifos –:
é melhor que me informe
aonde foste ser tu mesmo a sós,
indago de Isabel teu paradeiro
ou levo o teu cachorro pela trela
para rastrear teu cheiro pelo bairro.
(Me esquivo dos presságios imprudentes).
Releio Yourcenar para encontrar-me
com "a pequena alma errante, branda"
de Adriano, seu reino sem fronteiras,
seus desgostos de amor,
a lenta morte escrita.
(Terás ido a Chicago de emergência)
ou em férias ao campo).
Acabo de firmar novo contrato
para editar O Livro de Ismael
que nunca mais termino de escrever.
Chego a pensar o pior:
foste apressado do discurso ao beijo
e o coração não soube acompanhar-te.
(Me vejo percorrer La Recoleta
procurando o teu nome numa lápide).
Farei o que é devido nesses casos:
vou em peregrinagem de turismo,
me distraio tomando chás de menta
em Djema-a el Fna em Marrakech.
Talvez ponha um anúncio em algum quiosque
se busca um homem no limiar de um sismo
a oriente ou ocidente de Arenales,
tem marcas de guerreiro nas espáduas,
e dentro leva um duende
que transforma num púlpito o seu peito.
(Às vezes um selvagem que o habita
inaugura um abismo em cada sombra).
Voltarás – como o vento, voltas sempre –
ferido pela aguda lucidez
com que cruzas as ruas do absurdo.
Então eu te direi: te necessito
para reconduzir alguma estrela
que o ritmo desafine
na cadência do cosmos.
(Se cada coração conhece o seu limite
o do meu é uma linha em tua mão).
Lady in the water. Fotografia de Toni Frissell
CARTA (II)
Escrevo-te no verso de un ticket electrónico
desde um aeroporto fechado por decreto
de vulcánicas cinzas.
Quase não acredito
que hoje o céu haja sido interditado aos pássaros.
Sabes de que te falo: minha sorte viajeira,
e a ânsia de contarte
ideias que tomaram forma de labirinto:
Se em meu signo de ave migratória
que submisa ao seu fado devora latitudes
minhas asas quebrassem;
se na linha sutil do meridiano
que corta o meu exílio em hemisférios
acaso me perdesse,
levaria comigo ao despenhar-me
os fragmentos de ti de que sou cúmplice.
Em leito de sargaços jazeríam
enredados em algas, singrando entre despojos,
tua voz e essa lua suburbana,
teu Sul, nosso evangelho, o poço envenenado,
a chuva sobre o pátio, os dias de Dezembro,
o muro de glicínias, os espelhos e umbrais,
teu génio, teu carisma,
a memória de ti
e a ideia que cultivo dos teus olhos.
Já ves, penso em ti sempre,
e de tanto pensar-te me da pena
de arrastar teu fulgor nesta equipagem
ao esvair-se o hálito
com que em meio aos relâmpagos te chamo.
Assim, te deixo escrito nas estrelas:
se algum dia comigo se afogarem
esta parte de ti que foi tão minha,
o quanto me quiseste, o muito que te quis,
perdoa-me o naufrágio.
Fotografia de Cristina Alemparte
CARTA
Será outono aí. Será de noite.
Venho dos meus assuntos aos teus olhos.
Penso em ti sempre
com este amor de ar,
sem carne, sangue, pele ou incidentes,
com esmero de margens paralelas
e esta mania de oficiar meus ritos
nos altares do caos.
Faz muito que não sei notícias do teu cão.
Ainda não me contaste
como se comportou a primavera
nos muros do teu pátio.
Noto que não nos restam amigos em comum.
De mim te conto: agora uso chapéus
de feltro cor de mel quando te penso
e quando - como de hábito - estou louca,
um panamá genuíno, faixa preta,
que até me faz sentir quase normal.
Terminei de escrever aquele livro
por presumir que tenho algum talento.
Fui a Istambul de novo, porque sim,
só por causa das pombas que esvoaçam
desde a Mesquita Azul ao Corno de Ouro
às seis da tarde quando o dia apaga
e a voz do muezin chama ao adhãn
e me surpreendo no umbral das lágrimas
por nunca haver acreditado
numa alma imortal.
O não saber de ti me dilacera.
Com arames de farpa está cercado
o pátio onde acampam as milícias
que sufocam as minhas rebeliões.
E até mesmo a nogueira
que tem teu nome escrito em cada rama
morreu de espanto.
Essas coisas de mim venho contar-te
e, como ves, repito sempre o mesmo:
penso em ti sempre,
com este amor de ar
e vocação de caos.
The Rider. Fotografía de Anka Zhuravleva
QUANDO
Quisera estar aí quando é Dezembro
e chove sobre o pátio;
quando nas madrugadas
conversas com as árvores,
contando-lhes insónias e agonias,
e estreias alvoradas redentoras
para esses dias que nasceram mortos;
quando a luz de uma lâmpada de rua
desenha a tua sombra nas fachadas
e a noite debruçada nos balcões
cuida teus passos;
quando o teu cão profana aquele altar
onde cego, imortal, morava Borges
e te enche de ira e aflição
essa imprevista forma de penúria.
Quisera estar aí quando estás louco
quando me queres tanto
quando às vezes me odeias,
e laceras-me as costas entre credos,
e entrelaças teu nome em meus enigmas.
Fotografia de Lena Sergeeva
ENTRE DUAS GUERRAS
Venho entre duas guerras, quando emergem
dos despojos as ânforas antigas
e o vinho a sorvos sabe a um armistício,
um credo entre silêncios.
Repousam os corcéis das minhas tribos,
que num tropel de cascos sobre o pó
resgataram teu nome de entre as sombras.
Entre duas batalhas
eu venho a ti pequena e desarmada
sem manual de instruções para os meus medos.