sexta-feira, 11 de julho de 2008

MULHER DIANTE DO ESPELHO














Fotografia de Beatriz Morán

MULHER DIANTE DO ESPELHO

Pupilas de cristal, olhos de assombro,
ela me olha, ela está olhando
os resíduos de todas as batalhas,
os despojos de todos os naufrágios.

Vê os sulcos lavrados no meu rosto,
talhados com adaga e com arado;
quanto de servidão foi necessária
para gravar as marcas do chicote;
que árduos e inclementes os invernos
tornaram meus cabelos prateados.

Desde o cristal do espelho me contempla,
e me pergunta, está me perguntando
onde estará a que um dia foi menina
e às vezes aos meus olhos se assomava.
Terá caído –pensa- nas contendas
em que se confrontou com deus e o diabo.

Desde o cristal me olha, inquieta e triste,
seus olhos nos meus olhos espelhados,
e ao não se descobrir no seu revés
desvia o rosto e apaga a minha imagem.






















Pablo Picasso


HORIZONTES

Espera-me no molhe de um porto milenário
pois trago no regaço dois séculos de cismas
que percorri aos tropeços, remando um ideário
com remos de sofismas.

Pesada de horizontes se pôs minha fortuna
e algum desígnio injusto fez meu fado tristonho;
e no entanto estarei, na época oportuna
onde nasce o teu sonho.
















Pablo Picasso


ÁNGELUS

São seis horas da tarde.
Uma mudez de lápide
se tomba com fragor sobre os meus versos
enquanto à flor da pele, lume e almíscar,
se inauguram pecados
antecipadamente redimidos.

Do claustro dos meus lábios
fugiram as palavras que eram minhas:
fiquei sem os rosários
que costumava usar para rezar-me.

Abraçada aos meus ecos primordiais
quero dizer a música
do choro de um recém nascido,
o trovão que alucine a voz dos pássaros
e um gemido de amante
que cale a voz enorme do silêncio.

Às seis horas da tarde
no pórtico de todas as mordaças
ressoa um Ángelus cantado por demônios.






















Pablo Picasso


AO PÉ DO CALENDARIO

Volto-me para trás e contemplo, assombrada,
esse largo trajeto que recorri aos tropeços.
É tão longa e penosa a soma dos meus passos,
foi tão espesso o pó de cada encruzilhada.

Da mochila rasgada gotejaram as horas
e leve se tornou a carga de utopias,
perdidas as certezas, extraviados os credos,
olho com desconsolo minhas pobres pegadas.

Observam-me os que cruzam comigo nesta senda,
surpreendidos do mísero cariz dos meus andrajos,
nos cabelos carrego serpentes entrançadas
nas pontas dos meus dedos há garras e não unhas.

Ninguém busca os meus olhos onde moram os medos
nem procura o meu ombro onde não há refúgio,
sabem que não me resta mais que o lenho que arrasto
e o punhal escondido no viés dos meus seios.

Termina aqui o caminho. Aqui acaba a viagem.
Sento-me nesta pedra ao pé do calendário,
a alma ao rés do chão, esperando esse encontro
que combinei um dia com um velho demônio.






















Pablo Picasso


ESTE DOMINGO

Este domingo sabe a morte antiga.
O vento se perdeu nalgum atalho,
esta tarde tem cara de inimiga
e me acena com gestos de espantalho.

Este domingo cheira a bruxaria.
No meu sótão mental mora um demônio
com síndrome servil de idolatria
que se alimenta de oração e amônio.

Salto na amarelinha dos pesares,
mastigando pedaços de vingança
enquanto a minha sede pede mares
e se afoga nuns tragos de esperança.






















Pablo Picasso


ESPERO UMA PALAVRA

Espero uma palavra à medida
das incomensuráveis desventuras;
lógica, consequente e natural
como o braço e a mão.

Espero uma palavra, acendo luzes,
me penso vento sul, frequento esquinas,
vagueio nos meus próprios descaminhos
e para não pensar
na falta que me fazes
piso descalça sobre vidros rotos.

Espero uma palavra
que seja tua e caiba
nesta ferida.























Pablo Picasso


ESTÁ TUDO BEM

A luz cintila sobre o muro branco
onde rosas morenas se espreguiçam.
O ar é pouco mais que uma intuição
que resbala na pele e cheira a pinhos.
A manhã está em paz. Vai tudo bem.

E entretanto, tu, tão desvalida,
tão pálida, tão suja de tormentas,
como se um vendaval feroz houvesse
demolido as ameias do teu patio.
Há musgo úmido no teu cabelo,
nas tuas mãos se enredam folhas tristes
e peito adentro uiva uma matilha
olfateando os pontos cardeais
para cheirar colheitas incendiadas.
Trazes as unhas sujas de carvão
tal foi a sanha ao escavar a noite.
Nas tuas costas tens manchas de líquen
por haver-te deitado em tantas tumbas.

Acalma-te. Só há cheiro de pinhos,
alvorada serena, vida mansa,
os pintassilgos cantam nas ramagens.

Não há tornados destroçando bosques
nem incêndios na seara dos exilios.
A manhã está em paz consigo mesma.
Calma, Tania Alegria. Tudo bem.






















Pablo Picasso


FORJAR SILENCIOS

Sobreviver -disso às vezes se fala-
mais além das estritas contingencias,
despida e sem pretérito,
desessencial.
Sem as amarras do esqueleto pobre
e da não transcendente
estratégia de ser.

Forjar silencios mais além da boca
onde todos os ecos se sepultam.
Sobreviver - disso às vezes se fala -
em absoluto estado de inocência,
sem punição.

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PÁTIO ANDALUZ
















Fotografia de Redi


PÁTIO ANDALUZ

Inaugura o aroma dos damascos,
o murmúrio do vento nas roseiras
o sono dos jasmins na paz da sesta
os mosaicos do pátio em preto e branco.

Vê que o tempo não rompa com seu passo
os enredos sutis das trepadeiras
para que não se escapem essas lendas
esculpidas nos muros empedrados.

Cuida que o sol dançando nas ramadas
cintile no arabesco da nascente
e no insensato verde da folhagem.

Celebra o sortilégio, o som da água:
minha alma tem encontro com teu duende
nalgum pátio andaluz às três da tarde.






















Henri Matisse


LUA

Meus lábios que não te chamam
são selados em segredo,
não posso dizer teu nome
pois a lua está em zelos,
seus olhos de prata em ânsias
por ver teu corpo, moreno.

Com uma rosa nos dentes,
ai, mouro, estou te mordendo.


Meu corpo que te reclama
na noite estende o seu leito
e te esperam meus fascínios
nos velhos umbrais do tempo,
ansiando pelo teu corpo
que sabe a menta e deserto.

Com uma rosa na orelha
te escuto no som do vento.

Quando a lua me descubra
a enredar-te em meus bruxedos
e pôr-me em pontas de pés
para beijar teus cabelos...
Ai, que se ponha encarnada!
Ai, que morra de desejo!

Com uma rosa no ventre
minhas cadeiras maneio.
















Henri Matisse


TAÇA

Me enfeitei com madressilvas
para esperar-te, moreno,
modelei minha cintura
ao círculo dos teus dedos.
Enquanto isso sonhava
com tua pele de pêssego.

Trazes prazeres guardados
entre os gemidos do vento.

Úmida de inquietas pressas
minha boca não tem pejo,
língua de ave embriagada
busca em voraz esbracejo
onde caibam os meus lábios
nos espaços do teu peito.

A noite, lençol de seda
onde se deita o silêncio.


Tuas mãos são peregrinos
que recorrem meus trajetos;
com dentes de leão faminto
minha carne vais mordendo
e o manancial do teu corpo
enche a taça do desejo.

Com a vassoura da aurora
as nuvens varrem o tempo.




















Henri Matisse


SOMBRA

Minha sombra beija a tua
com boca de vinho espesso
enquanto esperam meus lábios
a mordida do teu beijo:
que deixe um travo de sangue
no caudal do meu desvelo.

Nas pregas da tua sombra
estão passeando os meus dedos.

Minha sombra no teu ombro
traça as linhas de um esteiro
para que não te extravies
quando busques o meu peito.
Te esperam meus impudores
pelas esquinas do vento.

Entre as mãos da tua sombra
estão pulsando os meus seios.

Minha sombra deixa marcas
com a língua do veneno
do teu pescoço ao teu ventre
num rio de gozo e segredo.
No mar da minha saliva
singra o teu corpo, moreno.

Nas ondas da tua sombra
estão dormindo os meus medos.



















Henri Matisse


MOURA, TORNEI-ME MOURISCA

Moura, tornei-me mourisca,
enteada de um deus alheio
e me dizem que é pecado
querer tanto como quero
a quem sustenta o Crescente
com punhos de sarraceno.

Enlaçando as oliveiras
nos teus braços estremeço.

Só o teu corpo é sagrado
no igreja dos meus lamentos;
a oração da minha língua
ardendo em mel e veneno
te reza de cima abaixo,
te queima como um inferno.

Colhendo cachos de uvas
nos teus sonhos eu desperto.

Os jasmins na minha horta
se balançam num maneio
quando o teu potro de ânsias
cavalga sobre os meus ermos
e os gemidos do meu sangue
quebram a face do espelho.

O Genil nasce em teus olhos
e no teu rio eu navego.






















Henri Matisse


PÁTIO

Furtiva venho ao teu pátio
na ausência do cavaleiro
que vai pelo Mulhacén
como um pária bandoleiro
por não ceder suas crenças
a um rei e a um deus estrangeiros.

Posso sentir teu aroma
de tigre acossado e fero.

Para não deixar pegadas
no teu pátio de arabescos
venho descalça e pequena
enroupada em meus segredos
e até os gerânios se assustam
quando neles te rastreio.

Têm o cheiro do teu suor
as flores do limoeiro.

Se me encontras semearás
com o teu brio sarraceno
no meu ventre um filho mouro
que me matará de medo
quando seguir os teus passos
de nômade e de guerreiro.

Ai, se não fosse mourisca!
Ai, se te quisesse menos!























Henri Matisse


SONHO

Da minha túnica branca
a noite fez um veleiro
destapando os meus quadris
revelando os meus segredos;
me despojou de vestidos
o aroma do limoeiro.

Resvalavam como peixes
teus olhos sobre os meus seios.

- Habibi a’oyonak maa’aya.
(escutava num arpejo
tua voz nos meus ouvidos).
Não me tocavam teus dedos
e ainda assim me estremecia
ao sopro do teu alento.

Deslizava no meu corpo
o caudal do teu desejo.

- Habibi, a’oyonak kifaya
Murmuravas em segredo
Eu te respondia em sonhos:
- Habibati és meu eleito.
A noite se desvelava
repetindo os nossos ecos.

Um milagre se escondia
no meu pátio de silêncios.
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Habibi: meu amor (o homem referindo-se à mulher)
habibi a’oyonak maa’aya: meus olhos estão contigo
habibi, a’oyonak kifaya: meu amor, isto me basta
habibati: meu amor (a mulher referindo-se ao homem)
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Henri Matisse


UMBRAL

Não atravesses o umbral:
deste lado está o inferno
onde te danço descalça
sobre a ânsia dos meus lenhos,
em chamas vivas que lambem
e abrasam quando te penso.

Desde a tua mão à minha
a noite estende o seu lenço.

Não transpasses esses vidros
porque sangrarão meus medos
se as tuas mãos feiticeiras
destroçam meus amuletos.
Desliza em mim teu olhar
desde o saguão do desterro.

Da tua boca até à minha
um pássaro voou perto.

Modela-me nesse instante
quando em teu olhar me vejo
para que more em teus olhos
assim como encantamento,
como a asa de uma pomba
presa nas cordas do tempo.

Entre o teu rio e os meus sulcos
dois abismos e um espelho.

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Foto de Granada desde o Albaicín, com vista do
Palácio da Alhambra e a Sierra Nevada

LÁPIDES





















Foto de R. Jaurégui


Olá.
Faz de conta que eu chego e te saúdo, numa vênia gentil, um requebro da letra.
Antes de mais cabe dizer que sinto falta daqueles velhos tempos quando nos encontrávamos para contabilizar os despojos do dia, falar daquelas coisas, tão nossas desde sempre, que às vezes nem sequer havia que as nomear.
Aqui estão todos bem. As águas nos seus leitos. O mundo em alvoroço. A mim nada me importa. Eu sigo lendo tudo. Escrevo algumas vezes, só quando a voz se escapa pelas gemas dos dedos.
Sem mais notícias beijo a ideia da tua boca. Quero que saibas,apesar de eu saber que tu não sabes nada: hoje a tua morte me doi de uma maneira infame.
Abraços.



MONÓLOGO DO MORTO

Esta manhã amanheci pretérito,
sem mãos para agarrar a vida diária,
sem pés que me conduzam para o mundo
nem pálpebras que abram as auroras.

Não tenho que ordenar cosmogonias.
Amanheci caótico e silente,
sem o dever de consagrar absurdos.

Aranhas tecem teias nos meus dias.
A morte é um relógio sem ponteiros.

Há um território exíguo em minhas vértebras
onde um fantasma construiu castelos.

Não vai o sangue apregoando urgências.
Não há a memória de ter sido amado.

Esta manhã amanheci sem alma.


ENCANTADOR DE PÁSSAROS

Eu lhe chamava encantador de pássaros
porque na sua voz esvoaçavam pombas.
Havia ecos de ritual vudu
no dolorido jazz dos seus fonemas.

Chove sobre o sepulcro do encantador de pássaros.
As aves se acomodam nos seus ninhos
e alguns ciprestes verdes, quase negros,
movem-se como os dedos de um pianista
porque o vento, assobiando,
transita da sua lápide aos ciprestes
e retorna com som de reza e música.

Chove sobre o sepulcro e sobre o manicômio
onde os dementes rasgam seus vestidos,
quebram as unhas arranhando muros,
empapados de pranto e de impropérios
porque o vento, assobiando,
recorre o mausoléu da sua morte
e volta gotejando versos viúvos.

Fincada nos meus pés, diante desse sepulcro,
sob um céu de betume e aguaceiro
olho esta pedra que é tão só uma pedra
e cobre um homem que foi só um homem
enquanto o vento, assobiando,
recorre as minhas veias
e torna ao coração com um gemido.


















Paul Gauguin


A NEGRA

A morte me acompanha, comedida,
desde sempre ao meu lado e até ao fundo,
testemunhando o fado vagabundo
e a minha biografia mal vivida.

Contempla os meus amores com a vida,
meu coito masoquista com o mundo,
a demente mania em que me inundo
da ânsia de viver, descomedida.

Não é ciumenta, a Negra, aguarda inerme
para acolher-me em lápide musgosa
quando a vida desista de querer-me.

Espera que tropece a minha sorte
para afinal, alegre e jubilosa,
celebrar com o diabo a minha morte.


NÃO SEI QUEM CHORA

Toco o teu nome
feito de letra ausente e mau presságio.
Não sei quem chora dentro do silencio.

Teu hálito no cristal
inaugura neblinas.
Limpo o teu rosto
com dedos sujos do veneno dos meus lábios.

Toco na tua boca
onde os nós se desatam.
Não sei quem chora dentro desse espelho.

Poço de pesadelos mal sonhados,
cemitério de tumbas entreabertas,
onde se aninham pássaros perdidos
e um verso inacabado.
Não sei quem chora dentro do teu túmulo.


















Paul Cèzanne


ESQUINAS

Tropeço em tua morte nas esquinas,
escuto a tua voz nos meus caminhos,
insondável e atroz como um aviso
expressado em enigmas.

Anda um fantasma triste no meu pátio
afugentando as aves com os dedos.
O rumor entre as folhas, dos seus gestos,
assusta a voz dos pássaros.

Em tudo ao meu redor ouço o gemido
do som que me atará pelas costelas
e deixará um punhal feito de ausência
cravado entre os meus seios.


ANDORINHAS

Enfim morreste, assim, sem mais razão
que o fato de estar vivo
deixando viúva
e sem recinto público
a larga multidão dos nossos versos.

Resta o silêncio fúnebre enraizado
num pátio de limoeiros e glicínias
onde havia uma acácia e uma nogueira
e um ninho de andorinhas
que a cada madrugada
voavam rumo ao sul.

E as andorinhas regressavam sempre,
em busca dos pretéritos do tempo
e dos futuros grávidos de enigmas
que- ainda que elas não saibam-
não voltarão.